Blogue de NELSON S. LIMA

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O que significa ser inteligente?

Costuma-se dar ao conceito de inteligência uma interpretação nem sempre lisonjeira. Arrogância, insensibilidade, racionalismo exacerbado, estranheza, estes são alguns adjectivos pouco elogiosos que podem ser associados ao exercício de conhecimento e aprendizagem intensos, frequentemente ligados à inteligência. A pessoa inteligente pode ser considerada excêntrica, algo deslocada do meio usual – é admirada ao mesmo tempo que é temida. Pode se transformar em alguém preso a complexas formas de expressão, a estudos complicados e excessivamente especializados, longe da realidade comum e quotidiana – seriam homens e mulheres que passam suas vidas tentando compreender a migração dos ursos pardos da Sibéria, ou as interações bio-moleculares dos sistemas genéticos humanos, ou ainda os efeitos das energias gravitacionais nos campos estelares binários. Para a maioria das pessoas, o uso da inteligência pode representar uma espécie de barreira à normalidade social (como podemos conversar com um intelectual sem cair naqueles assuntos rebuscados – e algo entediantes – que eles tanto gostam?), ou pelo menos uma estranha forma de viver. Na escola ou universidade, costumamos desprezar nossos colegas muito inteligentes, considerando-os desajeitados socialmente, feios, separados da realidade "legal" das festas e da superficialidade divertida. Pois, sob muitos aspectos, o conhecimento pode se tornar opressivo, sério, confrontador. A grande maioria dos seres humanos pouco conhece, ou elabora, aqueles assuntos considerados complexos demais, alienígenas demais. Ao mesmo tempo, a idéia de que possamos falar idiotices diante de pessoas brilhantes nos aflige, nos deixa na defensiva, temendo a humilhação inevitável que o confronto intelectual pode conduzir a todo indivíduo que ousa enfrentar as tortuosas vias do conhecimento.
De certo modo, existe realmente um aspecto pedante na inteligência. É possível encontrar homens ou mulheres de grande conhecimento, e que no entanto sofrem com excesso de orgulho ou vaidade intelectual. Eu até mesmo considero esta uma das mais graves moléstias passíveis de ocorrer na mente humana, quando ela sucumbe aos excessos opinativos, à inúteis elucubrações, ao exercício do conhecimento puramente acumulado e sem nenhuma sabedoria. Mas não devemos imaginar que este processo existe devido à inteligência em si; ele ocorre única e exclusivamente em função dos limites egoístas que podem acometer a uma pessoa, e o egoísmo vem a ser uma moléstia que provoca o desequilíbrio perceptivo sob muitos prismas, de muitas formas.
Mas, afinal, uma pessoa de conhecimentos é uma pessoa inteligente? Qual seria o critério que determina o sentido último da capacidade intelectual humana? Na verdade, a inteligência (como fenómeno perceptivo) possui uma natureza insuspeita, muito além do simples acúmulo de idéias, técnicas ou "expertise". Sim, eu sei que novas propostas sobre a natureza da inteligência surgiram nas últimas décadas, mas não é minha intenção apresentar uma abordagem pioneira sobre o assunto; meu interesse é simplesmente refletir sobre o papel na inteligência no exercício da compaixão. Para isso, devo apresentar minha visão do fenómeno intelectual sob um aspecto que irei denominar como inteligência integral. É um conceito já previamente delineado por pensadores antigos e modernos influenciados pelas escolas fundamentadas no humanismo universalista da philosophia perennis, além das escolas orientais de consciência, conhecidos por sua abordagem integrativa da percepção. Aqui eu gostaria de argumentar um pouco mais sobre o termo, dando-lhe algumas facetas que, penso, ainda não foram plenamente exploradas – pelo menos não sob o prisma da psicologia buddhista.

Como todo aspecto da vasta potencialidade mental humana, a inteligência possui gradações. Pessoas cruéis e insensíveis podem ser muito inteligentes, pessoas competitivas ou agressivamente combativas também. Há pouco tempo li um comentário de alguém que, após um período em que se afirmava afastado de toda polêmica, sentia-se "diminuído" – sentia que não havia crescido como pessoa. O conceito de aprendizagem e amadurecimento passa por muitas interpretações, e essa diversidade é que torna a inteligência humana talvez o mais difícil fenómeno mental a ser estudado e corretamente compreendido.
O facto é que não posso afirmar a existência de uma inteligência "melhor", mas posso sustentar que é possível atingir um nível de inteligência mais integral, convergente, construtivo. O problema é que tal forma de experiência mental não passa pelo aprimoramento de discussões, ou pela complexidade de conceitos filosóficos, pela sustentação de polêmicas ou elaborações analíticas. O caráter integrativo da inteligência passa pelo desenvolvimento (quero dizer, exercício) do mais importante trinómio na psicologia buddhista: discernimento saudável, discriminação correcta e atenção plena. Desta forma, o conceito de inteligência sob o prisma contemplativo buddhista aponta para um processo cuidadoso, gradual e constante de libertação perceptiva baseado na profunda auto-observação e auto-regulação. Ora, nossa mais comum interpretação sobre como se dá o aprimoramento da inteligência se baseia em um processo completamente diverso – e tipicamente egóico – de acumulação, diferenciação e, claro, disputa. Por outras palavras, valorizamo-nos como inteligentes se formos capazes de demonstrar acúmulo de conhecimentos, se somos capazes em demonstrar as diferenças entre conceitos, afirmações ou opiniões ou se formos eficientes em impor nossas concepções em disputas intelectuais, religiosas, analíticas e quaisquer outras. A inteligência se caracteriza portanto, no contexto simples das posturas quotidianas, como um processo restrito ao concretismo analítico da vida ou, no outro extremo, ao exercício de convicções ideológicas várias.
Mas tal forma de inteligência não comporta as nuances da compreensão consciente das coisas – a inteligência diferenciadora não permite que a percepção integrada ocorra em nossas mentes, e é justamente uma das barreiras ignorantes que têm levado a grande massa da humanidade ao seu mais insalubre caos emocional, social, político e econômico. Para que a consciência fluida e livre aconteça (no âmbito da inteligência integral), o exercício de compreensão precisa atingir outros níveis de aprimoramento, muito além de nossas idiossincrasias racionais. Este tipo de compreensão, no contexto da meditação, não se define apenas como a capacidade de entender diferenças, ou conceitos intelectualmente elaborados; a compreensão meditativa consciente tem a ver com a quintessência da compaixão sob a óptica buddhista, ou seja, tem a ver com a nossa capacidade de perceber o mundo de uma forma mais amigável, atenta e reflexiva – sem disputas, sem conflitos – e entendê-lo de uma forma profundamente aberta e simples.
A compaixão é comumente vista como uma virtude caridosa, uma empatia com o sofrimento alheio. E realmente ela irá actuar neste campo, sempre associada ao que há de mais belo na natureza humana. Mas no sentido buddhista a mente compassiva (Bodhicitta) deve ser entendida como uma mente onde a inteligência actua sob a égide do discernimento, da correta discriminação, e do mais profundo exercício de plena atenção (concentração sutil). Justamente quando a mente consegue acessar o potencial maravilhoso da inteligência sob a luz de uma percepção integrativa daquilo que é interpretado e cognitivamente analisado, teremos o fenômeno da compaixão ocorrendo de uma forma plena em nosso ser, curando a dolorosa ferida do egoísmo e da falta de respeito à existência.

A compaixão é um fenômeno da percepção, e não apenas um belo ímpeto idealista. Ela precisa ser vivenciada a partir da mais libertária forma de compreensão das coisas, e de uma mente realmente purificada dos graves equívocos conceituais, muito comuns em nossas mentes ainda anuviadas por vícios de hábito egoístas. Porque, na verdade, a compaixão direcciona-se para todo e qualquer ser vivo ou até mesmo objetos inanimados, sob qualquer condição; ela não tem a ver apenas com os seres que sofrem dores, privações ou violência. Ela tem muito a ver também com aqueles aparentemente belos e famosos, ricos e privilegiados ou então com os mais cruéis exemplos de ignorância humana. A mente bodhicitta compreende (e apreende) a todos, sem exceção. E o faz não por bondade ou condescendência, mas por profunda clareza de compreensão e discernimento sobre aquilo que realmente representa o sofrimento humano: a ignorância de si mesmo. E a ignorância é um mal que acomete a todos, e pode ser mais terrível justamente com aqueles aparentemente privilegiados por status social, beleza física dinheiro ou poder.
Da mesma forma que outras características de nossa mente, a inteligência também precisa fazer parte do processo de cura e transformação que fundamenta o exercício de crescimento interior, buscado e praticado por todos que realmente desejam experimentar uma mudança para melhor em si mesmos (e por si mesmos). A inteligência e a compaixão, quando vivenciadas em uma mente integrativa e perspicaz, caminham sempre juntas. Desta forma, posso afirmar que os homens e mulheres mais inteligentes são justamente aqueles que sabem compreender o mundo, que aprenderam a compor entre si, e que superaram a necessidade de polêmicas e conflitos. E os homens e mulheres mais compassivos são aqueles que superaram a diferenciação, e compreendem o caráter realmente universalista das ações que podemos ter diante da inevitável impermanência da vida – diante das perdas, misérias ou futilidades. São pessoas dinâmicas e com um discurso claro, capazes de parar e ouvir, superar erros e admitir seus limites. Não serão necessariamente intelectuais tarimbados, cheios de títulos ou conhecimentos complexos. Mas também não serão tolos, simplórios. A inteligência integral apresenta-se muito além dos rígidos conceitos acadêmicos tanto quanto das ingênuas fantasias esotéricas. Ela ocorre quando aprendemos a viver sem medo, enxergando o mundo com olhos simples, mas ainda assim muito, muito atentos à diversidade da existência.
Ao final, em si mesmo o dom da inteligência não é estranho, arrogante ou excêntrico – não nos conduz gratuitamente a um afastamento da alegria e do bem estar comum, não condena ninguém a um isolamento social – se somos assim, o seremos devido aos nossos próprios limites de consciência. A inteligência é um bem útil ao processo de iluminação humana, e fundamental para todo praticante do Caminho. Mas não, a inteligência não é em si mesma garantia de perspicácia, fluidez e coerência; será o indivíduo que determinará qual tipo de inteligência ele mesmo irá adquirir ao longo de sua vida: se aquela tolamente presa ao usufruto egoísta da razão, ou se aquela fundamentada em sabedoria reflexiva e correta compaixão diante da vida.
A sua vida depende muito do quanto (e como) você valoriza seu dom de aprender e perceber. Não se imagine suficiente; aqui e agora, busque mais de si mesmo. Se você lograr caminhar confiando em sua capacidade de transformação, certamente experimentará os méritos das descobertas saudáveis do ser, e fundamentará em si a mais integral forma de inteligência e esclarecimento. E essa sua conquista pessoal será também uma grande conquista para o bem maior da humanidade.


Contributo: Tam Huyen Van (2007)